domingo, 20 de maio de 2012

Nilce


    Era um dia incomum. Os carros não estavam nas ruas, às pessoas estavam quietas e tudo o que parecia circular pelo ar era a paz. O céu estava completamente branco e claro acompanhando o friozinho úmido do ambiente. Algumas poucas pessoas saíam de casa agasalhadas e ficavam na porta da frente observando aquele fenômeno. Mas ficavam ali só alguns momentos para em seguida voltarem para casa e irem cuidar dos seus planos para o dia. Um cachorro latia pro nada, cantarolando, ecoando um despertar de uma manhã calma e pacífica. E assim se encontrava o bairro, em uma eterna calmaria.
    Da ultima casa, antes do final da rua, um mulher saiu de dentro com um livro, em direção a uma cadeira de balanço posicionada no jardim da frente. Ela foi tranquilamente, de luva e nariz vermelho e se sentou na cadeira. Ninguém a viu. Ninguém nem imaginou que uma mulher estivesse ali, naquele momento. Mas ela estava com o mundo inteiro envolta de si. Olhou sorridente pra cima e fechou os olhos em uma espécie de agradecimento. Depois se voltou para o livro que estava em suas mãos e o abriu. Era um livro velho e amarelo que parecia estar guardado há muito tempo. Ela puxou alguns dos fios do seu cabelo branco, que estavam incomodando os olhos, para trás da orelha, enquanto ia folheando cuidadosamente as páginas aquele livro. Passava os a páginas devagar inspecionando cada linha cuidadosamente, procurando por uma parte específica. O livro inteiro estava repleto de rabiscos. Palavras e frases sublinhadas, observações escritas na beirada do livro, pequenos desenhos e maios outros milhares de detalhes todos com a mesma aparência. Ela sorria com alguns desenhos e rabiscos, se lembrando dos momentos em que eles foram colocados ali. Às vezes ela parava e ficava olhando para uma folha sentindo saudades daqueles momentos. Foi folheando o livro até chegar à página que procurava. Ela passou a mão por cima das duas folhas e começou a ler devagar e atentamente:
    “O outono havia chegado àquela tarde. As crianças estavam agitadas, brincando na rua com sua imaginação sem limites. Eu estava ali observando pela janela os seus passinhos apressados. Via a pureza nos seus olhos, a beleza nos seus atos, e era tomada por um sentimento de imensa gratidão. Não saberia mais para que continuar vivendo se não tivesse me tornado mãe. E só podia agradecer. Fechei meus olhos na esperança de sentir um pouco melhor a paixão que viajava dentro de mim. Ah, meus filhos. Como eu os amo. Os amei desde o primeiro momento. Quando seus pequenos olhos se abriram naquela noite maravilhosa, e procuraram os meus, desesperados. Os amei quando choravam todas as noites procurando no braço materno o conforto da noite. Os amei nos seus primeiros passinhos. Eu os amo incondicionalmente.
    Me lembro daqueles fins de tarde que chegava em casa cansada e os encontrava dormindo em seus berços. Lembro de quando esforçavam seus bracinhos e levantavam suas cabeças a todo custo para conseguirem me ver. E porque tão preciosos? Tinham um brilho tão grande nos olhos. Tamanha sinceridade. Lembro dos seus passinhos desajeitados. Me lembro tão bem deles, meus filhos.
    E agora estão aí, na rua, rindo a toa. Posso ver em seus olhos um sonho. Posso ver a perfeição com todos os seus defeitos se refletindo neles da forma mais pura. Banhados por folhas de outono. De olhos perfeitos, meus filhos. Não a nada que eu possa fazer. Amanhã vai nos apartar. Depois de um mês não saberei mais como era os proteger de tudo. Mas estarei aqui, mãe, para sempre.
    Guardem pra si esse coração dourado e venham me contar mais histórias sobre seus olhos. Deixem-me ser sua protetora. Olhem pra mim, onde estão suas mãozinhas? Não há necessidade de amarrar-las. Eu estou aqui. Mamãe. Não precisam forçar os braços fracos, me procurem nos dias, eu vou estar aqui, neste coração dourado.  Eu os amo. Mamãe os ama. Como lágrimas de saudades, eu os amo.  Sou tudo o que posso ser, porque sei que quero ser tudo que puder ser para vocês.
    Abri meus olhos e os vi sentados na sarjeta olhando para a rua. Meus filhos. E naquele silêncio os abracei de longe. Pela janela beijei suas faces. E o sol me banhou mais uma vez com mil gotinhas douradas de uma manhã de outono, eternizando em mim seus corações. Eu os amo. Meus filhos.”
   
    Enxugou as lágrimas e olhou mais uma vez para o livro. Ela nunca havia dado atenção para a história que estava contida naquele livro. Mas aquelas últimas páginas falavam mais do que se podia dizer com meras palavras. Ela acariciou as folhas como se ali estivessem os filhos que tanto amava. Ela foi acompanhando os rabiscos até chegar a uma lista de nomes:
Esther,
Luz,
João,
Clarinha,
Joy,
Gabriel,
Maria Angelica,
Natalia.”
    Ela trouxe o livro para mais perto de sua face e o beijou, um beijo no rosto de cada um dos filhos.  Ela fechou o livro e ficou ali sentada com o coração forte no peito. Sua vida completa. Lembrava de cada detalhe de cada um dos filhos, e amava a todos de formas tão distintas e tão iguais. Sorria. Mesmo com a tristeza que havia tido e com os problemas que a marcaram só conseguia lembrar-se de seus filhos e seus passinhos curtos e apressados. Neles depositou todo amor, todo o tempo, todo carinho e toda a esperança. Foi mãe, além da palavra, foi mãe. Mãe de saudade, mãe de amor, mãe de vida. Foi mãe. 

Um comentário: